"Muito cedo me foi colocado situações em que me sentia inferiorizado. A partir do momento em que valores, que não eram meus, me cercaram e quase por osmose, entranharam em meu consciente, conflitos apareceram. Poucas vezes sentaram ao meu lado e tentaram explicar o que eu sentia. Acreditava que poucas pessoas reparavam em mim."
Jovem, muito jovem, um documento dizia que era pardo. E sou, mas o que isto significava para uma criança pobre, nascida e criada em uma zona portuária onde as poucas pessoas que tinham uma esperança visível eram brancas. Eu não era branco, não era negro.. era pardo!!! Qual a esperança??
Final do primário, era bom aluno, um dos melhores, mas estranhava o tratamento que recebia. Um certo distanciamento dos professores. Um pequeno colega, bom aluno também, recebia um tratamento diferenciado, bem mais protetor. Cabelos lisos, branquinho e filho de professora. Eu, pardo filho de uma servente de hospital, pessoa maravilhosa. Seria esta a diferença?
Início de adolescência, era dos "Beatles". Hoje, talvez, fosse considerado um adolescente quase bonito. Magro, músculos delineados por muito jogo de bola e surfar de peito nas praias, bronzeado e com um ar de saúde. Época dos Beatles, os valores de beleza da nossa classe média eram: branquinho esquálido, cabelos escorridos no pescoço, se possível lourinho. E eu pardo. Cabelo só crescia para cima, só "black power" e o excesso de melanina ia de encontro aos valores vigentes. Garotos de guitarra e cabelos compridos impressionavam as meninas. Eu tirava e traduzia as letras dos "rocks", afinal era bolsista de um curso de inglês. Isto não impressionava. Foi difícil arranjar uma menina para namorar. A carne é fraca e virei São Jorge, o caçador de dragão.
Jovem adulto, com um passado de formação em escolas públicas, estudando em uma escola de engenharia federal. Era o último a chegar e primeiro a sair. Tinha que trabalhar. Minhas conduções dependendo do dia iam de barca a carroça, passando por trem e "busu". Meus amigos de escola, 99% branquinhos, filho de classe média estavam sempre juntos. Praias, barzinho, carrinhos novos e fuminho no DCE e eu..?? Pardo e duro. Não dava para frequentar.
Formei e mudei de cor. Passei a ser branco. É o que diziam todos os documentos que tirei a partir daí.
Parece que tirei de letra toda estas situações e outras, mas não foi bem assim. Doeu muitas vezes, chorei algumas vezes. Sabia que não existia diferença mas me sentia inferiorizado. Algumas vezes situações de relacionamento foram acintosamente desagradáveis e com certeza devido a condição social e até racial.
Ingressei de forma avassaladora na classe media no final da década de 70. A classe órfã da nossa ditadura, ungida por direito divino como entes superiores. Não foram poucos os atritos.
Ser inferior não seria minha opção. Sabia que o sentimento estava ali, juntinho comigo.
Atos e comportamento meus mudariam isto. Se justo ou não, não importavam.
Machuquei e fui machucado. Me eduquei verdadeiramente. Me sofistiquei amplamente em nossa cultura.
Rolei o rio, da nascente até a foz. As quinas e arestas se foram.
Tive que sublimar os valores que me impuseram e mudar os sentimentos que aceitei.
Valeu a luta. Poderia ter sido mais suave, reconheço.
Hoje olho com certa ironia e diria com um pouco de amor, esta hipocrisia da nossa sociedade.
Amor por isto fazer parte da nossa alma bruta e incompleta. Isto me tornou mais suave.
Ironia pela contradição desta camada de nossa sociedade. Tão inculta e arrogante. Isto me tornou mais sensato.
Este caminho foi solitário e não deveria ter sido. Muitos trilharam caminhos parecidos.
Muitos se encontraram e muitos se perderam na amargura.
Fica o testemunho.
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